A tributação da energia elétrica deve ser única e voltar para União
Diante da importância estratégica da energia elétrica para a produção e para o desenvolvimento nacional, sua tributação merece ser repensada com urgência, para que se assegure tratamento uniforme de carga tributária e redução de custos para o consumidor e toda a cadeia empresarial.
Diante da importância estratégica da energia elétrica para a produção e para o desenvolvimento nacional, sua tributação merece ser repensada com urgência, para que se assegure tratamento uniforme de carga tributária e redução de custos para o consumidor e toda a cadeia empresarial. Por isso, com a reforma tributária, deve-se refletir se não é o momento de a energia elétrica retornar à competência da União, com uma tributação única, com partilha do produto arrecadado com os estados.
Lamentavelmente, o ICMS transformou-se, por obra e graça do CONFAZ, essa entidade que legisla sem qualquer legitimidade democrática, no pior de todos os impostos brasileiros, numa babel de conflitos federativos, com alíquotas das mais variadas sendo praticadas entre os estados, regimes especiais e outros vícios. Com a energia elétrica não é diferente. Basta ver o Convênio ICMS 52/2017. Um somatório de inconstitucionalidades sobre substituição tributária. Sem alarde, foi substituído pelo Convênio ICMS 142/2018, ainda que mantenha ocultos muitos dos seus graves vícios.
Importante lembrar que, com a Constituição de 1946, a União manteve a competência para cobrar o imposto único sobre combustíveis e lubrificantes (art. 15, III, e § 2º). Mais tarde, após a Emenda Constitucional 18/1965, foram agregados o imposto único sobre minerais e aquele sobre energia elétrica (incisos II e III do art. 16, desta Emenda). O art. 22 da Constituição de 1967, por sua vez, assegurou para a União o imposto único sobre produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica. A partir da Constituição de 1988, este imposto único foi transferido para a competência material do ICMS, que passou a a incidir sobre petróleo, gás, combustíveis, lubrificantes, energia elétrica e minerais.
Assim, o § 3º do art. 155 da Constituição de 1988, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 33/2001, trouxe para a tributação do ICMS aquelas operações de produção, distribuição ou comercialização de energia elétrica.
Ao mesmo tempo, para assegurar sua expressão nacional e o regime de “destino” nestas operações, foi criada uma imunidade específica no estado de origem para a energia elétrica nas operações interestaduais, conforme o art. 155, § 2º, X, “b” da CF, a saber:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir:
I - impostos sobre: (...)
b) operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (...)
§ 2º. O imposto previsto no inciso I, b, atenderá ao seguinte: (...)
X - não incidirá: (...)
b) sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica; (...)
Essa disposição do art. 155, § 2º, X, “b” da CF, com sua determinação de “não-incidência do ICMS sobre as operações interestaduais, é norma de imunidade, seja qual for o conceito de imunidade que se adote. Quer como limitação constitucional à competência tributária (Baleeiro), como exclusão ou supressão do poder de tributar (Paulo de Barros Carvalho), ou como hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada (José Souto Maior Borges).
A adoção da expressão “não incide” no dispositivo constitucional não o torna mera hipótese de não incidência, mas significa que as operações interestaduais – entrada e saída – que destinem energia elétrica a outros Estados estão excluídas do campo de competência dos Estados de “origem”, como garantia de tributação unicamente pelo Estado de “destino”, após sua entrada, ou seja, unicamente nas operações de saída do estabelecimento do estado de destino.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a regra do art. 155, § 2º, X, “a”; cuja redação é idêntica à da alínea “b” (o ICMS não incidirá: a) sobre operações que destinem ao exterior produtos industrializados), deve ser qualificada como norma de imunidade (RE nº 212.637-3-MG, Relator Ministro Carlos Velloso, DJU 17.09.1999).
Ora, na designação da competência tributária relativa ao ICMS, o termo “operação” exige bilateralidade das partes[1], entre as quais o objeto (mercadoria) vê-se transferido, mediante circulação (finalidade), por qualquer título jurídico, de modo definitivo. Consequentemente, a expressão “operações” abrange tanto a saída de mercadorias do estabelecimento do vendedor, quanto a entrada de mercadorias no Estado do adquirente. Não há “operação”, tampouco “circulação” sem que haja entrada e saída de mercadoria (física ou não).
A norma de imunidade do art. 155, § 2º, X, “b” da CF impede a incidência do ICMS nas “operações” com petróleo, lubrificantes e combustíveis dele derivados, destinados a outros Estados. Proíbe, assim, a imposição deste imposto na operação como um todo, na saída do estado de origem “e” na entrada no estado de destino destes produtos. Afasta a competência do Estado de origem e do Estado de destino destas mercadorias, para tributar a operação interestadual. Estende-se à entrada e à saída, que são ambas etapas de uma operação.[2]
Destarte, todas as operações (entradas e saídas), que destinem energia elétrica a outros Estados, inexoravelmente, estarão submetidas ao regime de não-incidência, tanto na tributação da saída do Estado de origem, quanto da entrada no Estado de destino, independentemente de quem as adquira (se consumidor final ou não) ou das finalidades que motivem essas aquisições interestaduais.
Com estas regras, são fortalecidos importantes compromissos constitucionais, a exemplo do desenvolvimento nacional, da unidade nacional do federalismo ou da redução de desigualdades regionais (art. 3º da CF), que são legitimadores do art. 155, § 2º, X, “b”, da CF. Lamentavelmente, os estados distorcem estes fundamentos e, na sanha de tudo arrecadar, passam a adotar tributação desde o ingresso, por substituição tributária, como se fossem titulares da operação interestadual, que se vê imune.
O regime de tributação da energia elétrica acompanha tratamento autônomo e especial, como equivalente do antigo “imposto único”, motivo pelo qual não se aplica o tratamento do ICMS incidente sobre mercadorias. Portanto, subsistem no País regimes jurídicos bem distintos do ICMS, um regime geral relativamente às vendas de mercadorias (i) e aqueles especiais, dentre os quais, o regime sobre a venda interestadual de energia elétrica (ii).
Sobre a operação interestadual com energia elétrica, aplica-se o regime da norma de imunidade tributária da alínea “b” do inciso X do § 2º do art. 155 da CF, cuja redação original subsistiu à edição de sucessivas Emendas Constitucionais que promoveram alterações no regime constitucional do ICMS, mas sem qualquer mutação do tratamento da energia elétrica. A saber: a EC n. 03/1993; a EC n. 33/2001; a EC n. 42/2003; e a EC n. 87/2015. Nenhuma modificou o regime de imunidade da energia elétrica.
Em vista disso, a comercialização de energia elétrica não se submete ao regime interestadual não cumulativo do tratamento geral do ICMS, na medida que prevalece o regime especial de imunidade na saída do Estado de origem e de não tributação na entrada no Estado de destino, conforme a alínea “b” do inciso X do § 2º do art. 155 da CF.
Neste particular, imperioso constatar que, não obstante as operações com energia elétrica aparecerem ao lado daquelas com petróleo e seus derivados, gás, combustíveis e lubricantes, na alínea “b” do inciso X do § 2º do art. 155 da CF, com estas não se confundem. Para petróleo e combustíveis a Constituição adotou outras regras especificadoras, com tratamento diferenciado.
Exige reparo, portanto, qualquer tentativa de estender a jurisprudência firmada, pelo STF, relativamente às operações com combustíveis e lubrificantes àquelas que têm por objeto negocial mercadoria distinta, qual seja, a energia elétrica. Neste específico caso, a finalidade que o destinatário der ao produto é irrelevante para fins de fixação de sujeição ativa do ICMS. E esta opção não pode ser desvirtuada sequer por Lei Complementar, porquanto a norma do art. 155, XII, “h” da CF, não contempla operações com energia elétrica, tratando-se, com exclusividade, de combustíveis e lubrificantes.
Deveras, a imunidade do art. 155, § 2º, X, “b” da CF, e a norma do art. 3º, III, da LC 87/96, não autorizariam a imunidade das entradas interestaduais destinadas à industrialização ou à comercialização da energia elétrica (com tributação assegurada na saída dos respectivos estabelecimentos de distribuição ou de industrialização), como querem fazer crer os estados. Nesta lógica, sem qualquer base constitucional, sustentam que incidiria o ICMS sempre que a energia fosse destinada ao consumo ou mesmo à industrialização (como insumo) de produtos diversos.
Numa interpretação conforme a Constituição, a Lei Complementar jamais poderia restringir o âmbito material da imunidade constitucional do art. 155, § 2º, X, “b”, da CF, para admitir incidência do ICMS “pela entrada”, nas operações interestaduais com energia elétrica “não destinada à comercialização ou à industrialização” (LC 87/96, art. 2º, §1º, III), “cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente”.
Em qualquer desses casos acima, as distribuidoras devem receber o mesmo tratamento conferido às comercializadoras, sob pena de discriminação, contrária ao art. 150, II, da CF, que veda “tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”, “proibida qualquer distinção em razão de (...) função por eles exercida.” E isso porque operações de venda para um mesmo Estado serão por ele tributadas internamente; operações interestaduais não serão tributadas, na origem ou na entrada no Estado de destino, por força de imunidade constitucional (CF, art. 155, § 2º, X, “b”), garantida a tributação na operação subsequente, com a energia elétrica comercializada, portanto.
Especificamente no caso das operações interestaduais com energia elétrica, a sujeição ativa do Estado de destino dirá respeito não à entrada desta mercadoria em seu território, mas às etapas que a sucederem no ciclo econômico. Ou seja, a partir da saída do estabelecimento fornecedor. Não se podem aceitar corruptelas hermenêuticas para impor tributação à operação iniciada por contribuintes situados nos Estados de origem, como aquela de se adotar substituição tributária, em desprezo da Constituição.
Acertada, portanto, a posição firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em 27.06.2012, ao julgar procedente o Recurso Especial n. 1.322.072-RS. A ordem jurídica, nas situações de comercialização interestadual de energia elétrica, impõe um único efeito: a “não-tributação” na operação antecedente do Estado de origem, pois o art. 155, § 2º, X, “b”, da CF configura típica imunidade à operação interestadual, na sua totalidade, da saída do estado de origem e entrada no destino.
A não incidência no Estado de origem, por força do art. 155, § 2º, X, “b” da CF, e principalmente a incidência monofásica na entrada no Estado de destino, não podem implicar qualquer antecipação de pagamento do ICMS, pois isso equivaleria a descumprir a imunidade. Esta prática, porém, difundida entre os estados, gera uma tributação sobre energia que talvez sequer será consumida, pela perda ao longo da transmissão, furto ou mesmo inadimplência dos consumidores.
Ao seu tempo, a nefasta formulação normativa, por meio da substituição tributária, de imputar ao Estado de origem o dever de aplicar a substituição tributária contra os contribuintes destas operações, é amplamente eivada de inconstitucionalidade, Só teve como resultado, além de outros malefícios, acúmulos de créditos incompensáveis, em detrimento do princípio da não-cumulatividade.
Portanto, queda-se flagrantemente inconstitucional, na hipótese de operação interestadual com energia elétrica, qualquer instituição, por lei complementar, convênio ou lei estadual, de tributação na entrada para consumo ou mesmo de criação de substituição tributária, pela proibição constitucional de incidência do ICMS (imunidade). A finalidade (“não destinada à comercialização ou à industrialização”) aparentemente redutora da imunidade da energia elétrica, só tem aplicação constitucional para combustíveis e lubrificantes. Não pode ser empregada por “analogia” para exigir tributo, se não porque a Constituição não o autoriza, mas até mesmo em virtude da vedação do art. 108, § 1º do CTN.
Em vista dessas considerações, confirma-se sobremodo danoso para os mercados atacadista e varejista de energia elétrica, bem como para todos os consumidores ou industriais, que arcam com o custo da energia elétrica em patamares assaz elevados pelos excessos do ICMS, os efeitos perversos das suas técnicas de concentração de alíquotas ou de substituição tributária. E como o princípio de destino será sempre um indutor de evasão fiscal neste tipo de mercado, fundamental que a reforma tributária transfira para o IVA Federal, se assim for criado, a tributação exclusiva (única) incidente sobre a energia elétrica. Quanto à “perda” da base tributável, os estados poderiam perfeitamente receber 50% do produto arrecadado, como receita transferida da União. Mais valioso é o benefício geral, pois seria uma medida que traria relevantes benefícios para toda a sociedade e melhor eficiência arrecadatória.
[1] COSTA, Alcides Jorge. ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Resenha Tributária, 1978, p. 81.
[2] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 441.
Heleno Taveira Torres é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).
Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2019, 9h46