Liberdade de expressão e Direitos de Personalidade
O Supremo Tribunal Federal, ao longo da última década, enfrentou questões relevantes no que diz respeito à liberdade de expressão, matéria de importância central não só para o Direito Constitucional, para a formação da vida política e democrática, mas também para o Direito Civil, no que concerne à relação entre particulares.
O Supremo Tribunal Federal, ao longo da última década, enfrentou questões relevantes no que diz respeito à liberdade de expressão, matéria de importância central não só para o Direito Constitucional, para a formação da vida política e democrática, mas também para o Direito Civil, no que concerne à relação entre particulares.
É tema próprio, portanto, para que se repense a aproximação destes ramos do direito e para esta intervenção que faço, por gentil convite, na coluna mantida pela Rede de Direito Civil Contemporâneo. E o faço, ainda, por oportunidade do lançamento da obra Liberdade de expressão, honra, imagem e privacidade: os limites entre o lícito e o ilícito, editora Manole, de autoria de Carlos Frederico Barbosa Bentivegna, a qual debruça-se sobre este problema e que tive a satisfação de prefaciar. O livro é fruto de densa pesquisa de mestrado desenvolvida pelo autor, sob orientação do Professor Titular do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo Rui Geraldo Camargo Viana.
A definição dos limites de liberdade de imprensa e da liberdade artística em relação aos direitos de personalidade, notadamente em relação ao direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, trava uma fundamental discussão acerca da colisão de direitos individuais.
Fala-se em colisão entre direitos fundamentais (Grundrechtskollision) quando se identifica conflito decorrente do exercício de direitos individuais por diferentes titulares. A colisão pode decorrer, igualmente, de conflito entre direitos individuais do titular e bens jurídicos da comunidade [1]. Assinale-se que a ideia de conflito ou de colisão de direitos individuais comporta temperamentos. É que nem tudo que se pratica no suposto exercício de determinado direito encontra abrigo no seu âmbito de proteção.
Tem-se, pois, autêntica colisão apenas quando um direito individual afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito individual[2]. Exemplo de típica colisão em sentido estrito se verifica justamente nas situações de contrariedade, ainda que aparentes, entre a liberdade artística, intelectual, científica ou de comunicação (CF, artigo 5º, IX) e a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem das pessoas (CF, artigo 5º, X)[3].
O principal problema que se apresenta, nessas situações, diz respeito ao ‘status’ assegurado à liberdade de expressão frente aos demais direitos fundamentais em eventual situação de conflito. Uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passa pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre direitos individuais[4]. Essa via, no entanto, não parece ser a mais adequada. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes “pesos” numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando também a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico.
Nas situações de conflito entre a liberdade de opinião e de comunicação ou a liberdade de expressão artística (CF, artigo 5º, IX) e o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem (CF, artigo 5º, X), o texto constitucional parece deixar claro que a liberdade de expressão não foi concebida como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo. Não se excluiu a possibilidade de serem impostas limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas liberdades haveria de se fazer com observância do texto constitucional. Não poderia ser outra a orientação do constituinte, pois, do contrário, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito absoluto e insuscetível de restrição.
Ao se deparar com situações de conflito entre os direitos fundamentais de liberdade de expressão e de à inviolabilidade da intimidade, o STF tem historicamente buscado estabelecer critérios objetivos de balanceamento. Nesse sentido, o Tribunal já decidiu, por exemplo, que o maior ou menor grau de exposição pública da vítima é critério relevante para aferição de possível lesão à honra e para a definição do limite à liberdade de expressão[5].
No período recente, a corte tem intentado extrair balizas objetivas para o enfrentamento dessas colisões principalmente a partir dos entendimentos firmados nos paradigmáticos julgamentos da ADPF 130/DF[6], em que o tribunal realizou o juízo de recepção da Lei de Imprensa, afirmando que a disciplina do artigo 220 da CF apresenta mecanismos alternativos à censura para assegurar a proteção de posições individuais, e da ADI 4815/DF[7], quando a Corte entendeu que a exigência de autorização prévia para publicação de obras de biografias. Revisitando a ratio desses precedentes, o Tribunal ampliou a sua cognição na admissão de reclamações constitucionais em matéria de liberdade de expressão, reafirmando que, em regra, a colisão da liberdade de expressão com os direitos da personalidade deve ser resolvida pelas vias do direito de resposta ou da reparação civil[8].
A despeito desses impulsos de consolidação da jurisprudência, vê-se que o debate acerca dos direitos de personalidade não comporta soluções definitivas. A riqueza do tema demanda o contínuo adensamento teórico do diálogo de campos entre o Direito Constitucional e o Direito Civil, tarefa é levada a cabo com esmero pela obra de Carlos Frederico Barbosa Bentivegna.
Em Liberdade de expressão, honra, imagem e privacidade: os limites entre o lícito e o ilícito, Bentivegna parte da perspectiva civilista, razão pela qual o leitor poderá buscar aprofundamento nos debates conceituais sobre personalidade e de direitos de personalidade, bem como as suas classificações. Socorre-se o autor, dentre outras, das lições de Adriano de Cupis, para quem, em princípio, todos os direitos, enquanto destinados a dar conteúdo à personalidade, poderiam dizer-se direitos da personalidade.
No entanto, na linguagem jurídica reservou-se tal designação apenas àqueles direitos subjetivos cuja função, relativamente à personalidade, se especifica de forma a constituir o mínimo necessário e imprescindível de seu conteúdo. Assim, haverá direitos sem os quais a personalidade restaria uma atitude completamente insatisfeita, privada de qualquer valor concreto, ou seja, direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse. Se eles não existissem, a pessoa sequer teria a qualidade de ‘pessoa’. Seriam, pois, direitos da personalidade aqueles revestidos da essencialidade, a constituir o núcleo mais profundo da personalidade.
A pesquisa explora as distinções e conexões entre os direitos privados da personalidade e os direitos fundamentais, cuidando das diferentes “gerações” ou “dimensões” de tais institutos — inspirado na clássica divisão em gerações dos direitos idealizada por Karel Vazak em 1979. Com esses conceitos consolidados, a obra conduz o leitor a análise pormenorizada da liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, traçando-se um panorama das normas matrizes internacionais sobre o tema ao longo da história e sobre a jurisprudência estrangeira. Dedica-se especial atenção ao “uso e abuso da liberdade de expressão e de manifestação do pensamento”. Com base em Ramon Daniel Pizarro, destacou-se que “la libertad de expresión y, en particular, la de prensa no constituyen un altar en el que pueda inmolarse indebitamente la dignidade de las personas”.
A obra apresenta didaticamente os casos mais emblemáticos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, como o Caso Lüth, o Caso do Livro Sobre a Guerra, o Caso Soldados Assassinos, o Caso do Romance Pornográfico, o Caso da Cerimônia em Memória de Rudolf Hess; assim como por aqueles da Suprema Corte Norte-americana, a exemplo do Caso Terminiello v. Chicago, Caso R.A.V. v. City of St. Paul, Caso Texas v. Johnson entre outros.
O passo seguinte é tratar da proteção à honra, à imagem, à intimidade e à privacidade, com particular atenção à teoria dos círculos concêntricos: o maior deles seria a esfera privada (Privatsphäre), em seguida a esfera da intimidade (Vertrauensphäre) e, finalmente, como o mais estreito dos círculos concêntricos, a esfera do segredo (Geheimsphäre).
Com a delimitação dos direitos envolvidos, o autor trata de descrever a técnica da ponderação entre princípios colidentes (preparação da ponderação — Abwägungsvorbereitung —, realização da ponderação — Abwägung — e reconstrução da ponderação — Rekonstruktion der Abwägung). No sentir do autor, os elementos a ser levados em consideração na ponderação são: 1) a redução da esfera de proteção dos direitos da personalidade de pessoas notórias; 2) a vedação do discurso de ódio; 3) o direito ao esquecimento; 4) o animus jocandi e 5) a redução da esfera de proteção dos direitos da personalidade do criminoso e do acusado do cometimento de crime.
Ao indagar se a liberdade de expressão é direito fundamental preferencial prima facie, a obra propõe que os artigos 12, 20 e 21 do CC/2002, que fundamentam as tutelas inibitórias em proteção dos direitos de personalidade, não contrariam o artigo 220 e §§ 1º e 2º da CF/1988?. Quatro principais razões são apresentadas: a) o caput do artigo 220, CF, veda restrições à manifestação do pensamento, desde que observado o próprio texto constitucional, o que não afasta, assim, a eficácia de outros direitos fundamentais e a própria técnica de ponderação; b) o artigo 220, § 1º, CF, só obstaria a edição de normas infraconstitucionais se estas permitissem o anonimato, vedassem o direito de resposta, impedissem a vítima de buscar reparação, se excluíssem o núcleo de proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, se impedissem o livre exercício profissional, ou, ainda, se impedissem o sigilo de fonte; c) o artigo 220, § 2º, CF, obstaria a edição dos artigos 12, 20 e 21 do CC/2002 se eles trouxessem em seu texto hipóteses de censura de cunho político, ideológico ou artístico. Para o autor, como as referidas regras do Código Civil apenas visam a fazer cessar a lesão, não incidiriam em qualquer inconstitucionalidade.
Tendo sido concretizada a ideia de uma aldeia global, em que todos comunicam-se entre si, de forma horizontal e ininterrupta, percebe-se que a temática permanece atual e invade o dia a dia forense. Espero, com estas breves palavras, estimular o aprofundamento das discussões acadêmicas sobre tão rico tema, não só com a análise dos importantes precedentes estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, mas também com a leitura das diversas obras de jovens autores que chegam ao mercado editorial.
Espera-se que o leitor possa encontrar iluminações que ajudem na superação dos desafios que têm sido postos nas esferas do Direito Constitucional e do Direito Civil no tocante à proteção dos direitos de personalidade.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
Fonte: Conjur